Sobre o risco de ter miragens - conversando com Francisco

 Uma leitura feminista da Encíclica Fratelli Tutti

Por nancy rabiscos-

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http://www.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa-francesco_20201003_enciclica-fratelli-tutti.html (texto da encíclica)

As contribuições do Papa Francisco no atual período de crises que vivemos já são conhecidas e reconhecidamente. No ponto 108 Francisco toca numa ferida estrutural da apropriação de terra e território e os mecanismos de privatização dos comuns que geram pobreza, os casos de racismo que continuam acontecendo (ponto 20), a falta de plenos direitos humanos para as mulheres (pontos 23, 121 e 136) e como vítimas de violência (pontos 24 e 227).

Tudo está posto e bem analisado; o texto vai criando uma síntese importante… mas insuficiente e pouco corajosa porque não enfrenta a miragem mais antiga, estrutural e estruturante: o patriarcado.

Sozinho, corres o risco de ter miragens, vendo aquilo que não existe; é juntos que se constroem os sonhos” – Fratelli Tutti (ponto 6)

Mas seria demais pedir do Papa Francisco que fosse uma voz para além da voz dEle mesmo: é uma voz histórica, situada e plena de identidade patriarcal que – se considerada sozinha – pode nos projetar miragens: de um patriarcado pacificado, uma comunidade de homens-irmãos.

Precisamos de espaços de diversidade, plenos de simetria e processos de decisão democráticos. O cristianismo em geral, e a igreja católica em particular, não tem sido espaço de generosa e radical democracia. Por isso é extremamente importante não deixar Francisco, o Papa, falando sozinho: é preciso fazer ouvir as vozes que Francisco não pode pronunciar por nós:

feministas populares, indígenas, comunitárias, negras, camponesas, feministas lésbicas, com diferentes capacidades, feministas socialistas, materialistas, operárias, sindicalistas.[1]

 

 Perdoar com a dor alheia: não!

O perdão e a suspensão da vingança vão ser expressos de modo insistente na Encíclica (pontos 227, 241). Entretanto esta perspectiva vai ser fragilizada e descaracterizada quando um modelo de família ideal vai ser apresentado como exemplo de “projeto comum” capaz de perdoar.

- As brigas de família tornam-se reconciliações mais tarde… Oh, se pudéssemos conseguir ver o adversário político ou o vizinho de casa com os mesmos olhos com que vemos os filhos, esposas, maridos, pais ou mães, como seria bom! (ponto 230)

Não é nada bom! Ampliar o modelo familiar para as relações de vizinhança e disputa política é péssimo e revela a falta de escuta do que as mulheres – nas igrejas e na sociedade – vem dizendo.

Relacionar “briga familiar – reconciliação” revela mais uma vez que as igrejas não têm coragem da autocrítica. Esta família e este perdão são miragens.

https://fineartamerica.com/art/paintings/samaritan+woman

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Em memória dela: a Samaritana

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A simbologia bíblica apresentada é a do Bom Samaritano: Diante de tanta dor, à vista de tantas feridas, a única via de saída é ser como o bom samaritano (ponto 67). O “Samaritano” é o protagonista, ele tem a iniciativa e é o exemplo; a pessoa que sofre a agressão - (ponto 67) - e que recebe a boa ação do Samaritano é vítima! Não fala nada, não tem opinião e recebe passivamente os cuidados e ações.

Por isso fico com a Samaritana (João 4, 5 a 29): ela recebe Jesus, ela identifica os preconceitos e desigualdades; ela sabe que é mulher e não tem “palavra”: mas ela fala! ela explicita os conflitos, ela não aceita sermão pronto, ela quer interação verdadeira! Ela também sabe escutar e sabe retrucar. Ela negocia. Ela cria um espaço de entendimento e ela corre para criar as condições da boa nova.

Sem esta escuta e convivência as palavras, pastorais, encíclicas e teologias viram “miragens”. Não somos “TODOS IRMÃOS”, Francisco. Somos tutto (todo), tutta (toda), tutti (todos), tutte (tudas), tanto (tanto), tanta (tanta), tanto (tantos), tante (tantas): tutte sorelle, tutti fratelli, tutta la vita!.

- Conheça a canção do Conselho de Mulheres Católicas: https://www.youtube.com/watch?v=e3nj6BOUE0Q

[1] 14º. Encontro Feminista Latinoamericano e do Caribe – realizado no Uruguai em 2017, https://www.awid.org/es/noticias-y-an%C3%A1lisis/feministas-diversas-pero-no-dispersas


Claudia Florentin